She loves you, yeah, yeah, yeah


Nunca a vi dançar. Em nossos quase trintas anos de convívio, a dança, a bebida, a música foram prazeres mais que supérfluos. Às vezes entoava nos momentos difíceis alguma canção de Roberto. Uma vez por ano, adorava assistir o seu especial na TV. Também nunca o vi dançar. Durante esse tempo, a música fora algo distante. A bebida e a comida fartas ocupavam a fruição possível.

Era uma vida amável, mas em boa parte austera. Não pela dureza dos tipos ou por algum estoicismo católico. Na vida rústica da pobreza diária que levavam enquanto cresciam, não puderam aprender a apreciar de forma mais detida a música.

Por volta de meus doze anos pude escolher um presente de natal. Fiquei acanhado imaginado se não era pedir demais. Tateei bem as palavras antes de dizer para eles que queria um som... Um toca fitas desses que chamávamos de Dois em Um.
Não me esqueço do fascínio que era possuir aquele aparelho. E de chegar à loja de discos para pedir que o balconista me indicasse o que era bom: uma fita do Raça Negra e uma coletânea de dance. Escutei-as muito antes de gravar uma coletânea do Raul e ganhar uma outra do Iron Maiden. Aí a coisa desandou, tamanha a paixão que adquiri por meu toca-fitas. Na família passei a ser chamado de Zé do Rádio.

Um dois anos depois, eles entraram num consórcio e compraram um Quatro em Um. O CD estava se popularizando. Ficamos todos felizes com a potência que suas caixas emanavam. Tinha 900 watts! Divulgávamos com certo prazer.
Também pude escolher um disco para inaugurá-lo. Outra vez me envergonhei ao pretender comprar um cd que julgava caro. Ainda mais duplo. Insistiram para que pedisse o que eu mais gostava.

Para os dois, a música continuava distante. Enquanto eu e minha irmã nos apropriávamos daquele aparelho. Escrutinando o mundo através de cada nova banda de rock que passávamos a amar. Eles quase nunca pediam para que colocássemos algum disco: ela um do Roberto e ele um do Sérgio Reis. Nem nas festas de família eu os vira dançar. Um remelexo que seja.

Agora ele se foi. Levado por um infarto. Exatamente um mês antes do baile de formatura que esperava com tanta ansiedade. Pouco depois de me mostrar a calça que usaria nesse dia.


Depois da valsa, uma banda cover dos Beatles embalava a festa. Os mais novos se juntavam aos mais velhos para festejar ao som de "She Loves You". Foi quando a vi dançar pela primeira vez.
Os braços se moviam de uma forma arrastada, enquanto o quadril girava um tanto bambo sobre seu eixo. Um balanço nervoso. Eu a olhei nos olhos enquanto dançávamos. Pude ver esforço que fazia para se juntar a nós.

Essa foi a dança mais pungente que assisti em minha vida.


"Because she loves you
And you know that can't be bad
She loves you
And you know you should be glad


She loves you
Yeah, yeah, yeah"

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Mais um blog, mais um dia... Preciso explicar o que me vem a ser um dia, para que talvez nos entendamos. Um dia não tem 24 horas. Nem é possível mensurá-lo, ainda que nele haja tempo. Um dia pode durar uma semana, um ano ou um mês. As vezes, um dia, dura toda uma vida. Um dia é todo instante em que o tempo se marca dentro de nós, ou fora. Um dia é toda vez que fisgamos o tempo antes dele se soltar do anzol. Um dia é toda vez que somos fisgados pelo tempo antes de nos soltarmos. Um dia é quando se percebe que o tempo existe, ainda que nem mesmo vejamos sua passagem, intangível. Quanto tempo durou meu último dia? Não sei dizer. Acho que durou uns beijos, alguns abraços e uma volta feliz para casa. Durou alguns segundos antes que eu adormecesse. Durou o sorriso que dei assim que acordei. Já tive dias que duraram meses... Em que o tempo se marcava entre as escovações de dentes necessárias e o banho que se havia de tomar... Então esse é meu blog. Se gostaram, não esperem o que haverá de novo, amanhã. Tudo dependerá da duração do dia.

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