Sobre meninos e lambaris





Havia um lugar tranqüilo onde as folhas de mangueira deixavam trespassar manchas mornas de sol. No chão coalhado de mangas ouro, dividíamos o banquete com abelhas e outros pequenos seres. Um pouco a frente, o córrego de prata escorria de um pasto arroxeado e guardava para nós os lambaris. Coriscos raios de luz que vínhamos buscar de tão longe. Ali não existiam pais que brigavam com as mães quando chegavam bêbados. Nem mães que praguejavam dia-a-dia a vida enquanto perdiam a saúde. Havia apenas essas pequenas vidas. Buscando um caminho menos estreito em meio a tanta coisa muda amontoada. Havia essas fagulhas mais rápidas que o instante, roubando as iscas que com tanto carinho estripávamos no anzol. E quase vê-los sob as águas turvas era mais bonito que pescá-los. Minto. Encher a fieira. Ostentar os despojos da guerra travada nesse mundinho de meninos e lambaris. Levávamos as coisas mais bonitas mortas para serem devoradas na janta das sete. Então, entre os passarinhos. Decidir seu último vôo antes da pedrada mais certeira que vinha sempre das mãos de Vaguinho. Depois da queda, achá-los em meio ao capim gordura. Sentir aquela vida miúda pulsando entre nossos dedos. Como se segurássemos um pequeno coração emplumado. E no jaz, entregavam a cabecinha que pendia com o biquinho aberto. Aí vinha um desespero indentro de nós. Buscar água. Jogar no côco deles para ver se assim ressuscitavam. Ninguém se salvava. Mesmo os sapos, bichos bons. Comiam os mosquitos que picavam a gente. Mas podiam mijar em nossos olhos. Inchavam, inchavam. E era só colocar uma pedrona bem no rumo da cabeça deles e soltar. Às vezes chiavam de dor. Da pele caracachenta azulada saía um sangue. Vermelho. Igualzinho ao nosso... Morriam mais de feiúra. Como os calangos. Espalhavam cobreiro. Os mais felizes por saber correr. Mesmo as cobras mansinhas de Vidro ou Cipó. E daí, se comiam passarinhos? Ou os Jaracussus puro veneno? Ou as aranhas pretas fazedeira de teia nas cumieras das casas? As caixas de marimbondo arrebentadas na corrida. Antes de escurecer, restava a tristeza de limpar as escamas que se grudavam em nossos corpos magros como paetês que trouxéssemos de um antigo carnaval. Livrávamos do arroz-com-feijão-apenas com nossos raios de luz ressecados pela fritura em gordura velha. A janta. A novela. O urro do pai. O chorinho da mãe. A luz acesa pra dormir. Grandes olhos arregalados na clareira da noite. Nesse mundo de seres miúdos somente o urubu era rei. Bicho de Deus. Era ele quem limpava o mundo todo para nós.



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Mais um blog, mais um dia... Preciso explicar o que me vem a ser um dia, para que talvez nos entendamos. Um dia não tem 24 horas. Nem é possível mensurá-lo, ainda que nele haja tempo. Um dia pode durar uma semana, um ano ou um mês. As vezes, um dia, dura toda uma vida. Um dia é todo instante em que o tempo se marca dentro de nós, ou fora. Um dia é toda vez que fisgamos o tempo antes dele se soltar do anzol. Um dia é toda vez que somos fisgados pelo tempo antes de nos soltarmos. Um dia é quando se percebe que o tempo existe, ainda que nem mesmo vejamos sua passagem, intangível. Quanto tempo durou meu último dia? Não sei dizer. Acho que durou uns beijos, alguns abraços e uma volta feliz para casa. Durou alguns segundos antes que eu adormecesse. Durou o sorriso que dei assim que acordei. Já tive dias que duraram meses... Em que o tempo se marcava entre as escovações de dentes necessárias e o banho que se havia de tomar... Então esse é meu blog. Se gostaram, não esperem o que haverá de novo, amanhã. Tudo dependerá da duração do dia.

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